quinta-feira, 10 de março de 2011

Para falar fluentemente a língua do sistema imunitário

Você já teve sarampo? Se você tem menos de 15 anos, a chance de eu receber uma resposta afirmativa a esta pergunta é a mesma que tenho de ganhar na Mega-Sena com uma só aposta. Na verdade, se tens 15 anos, eu até te perdoo se nem mesmo souberes que raio é sarampo. Perdoo, porque na primeira metade da década passada eram registradas apenas algumas dezenas ou centenas de casos de sarampo por ano nas Américas – sim! Central, do Sul e do Norte, juntas. Número insuficiente para sustentar noticiários sobre sarampo. Em 2008 foram registrados apenas 2 casos entre americanos! O vírus do sarampo perdeu a guerra contra o nosso sistema imunitário. Mas se hoje ganhamos tão facilmente deste vírus é porque informações valiosas sobre os seus pontos fracos chegaram ao nosso sistema imunitário, aquele incansável e sempre alerta guardião da nossa saúde, antes mesmo que o vírus tivesse a oportunidade de entrar no nosso organismo. O mensageiro que nos forneceu essas informações tem um nome que nada sugere acerca de sua função, mas que de imediato relacionamos a uma proteção, um sossego, de longo prazo: vacina. Sim, sem ela, sem as informações que esta passa ao nosso sistema imunitário, teríamos que entrar numa batalha dolorosa contra o vírus antes de vencer a guerra.
O nome vacina deriva de vaccinia, uma palavra latina que significa “da vaca”, e foi dado pelo inglês Jenner, seu ilustre inventor, em 1796. Naquela época, Jenner conseguiu tornar o seu sobrinho imune à temida varíola humana através da injeção de um preparado de pústulas obtidas de vacas infectadas com o vírus da varíola bovina (recomendo que os interessados se aprofundem nos detalhes desta história, um tanto quanto hilária e controversa). Caro navegante, é difícil fazer idéia da real dimensão da revolução causada por Jenner. Foi a partir da vacina de Jenner que a varíola humana, uma doença terrivelmente contagiosa e altamente letal, foi aniquilada da face da terra em menos de 200 anos. Seu vírus, hoje, é encontrado apenas em dois laboratórios – você pode fazer idéia do porquê disso e, mais além, se eu disser que esse estoque foi mantido por conta da guerra fria, provavelmente você saberá onde estão estes dois laboratórios. Essa revolução nas ciências da saúde fez com que cientistas, como o genial francês Pasteur, dedicassem suas vidas à procura de vacinas para outras doenças. Os sucessos obtidos com as vacinas criadas ao longo de mais de dois séculos depois de Jenner foram fantásticos. Foi visto um rápido decréscimo na incidência de diversas doenças com as quais a humanidade convivia havia milhares de anos.

Paciente com varíola.


Porém, segundo a OMS, mesmo com a existência de diversos tipos de vacinas eficazes, cerca de 9 milhões de crianças morrem todos os anos no mundo por causa de doenças infecciosas, a maioria das quais poderiam ser evitadas pelo uso de uma vacina apropriada. Cerca de 1/3 destas mortes poderiam ser evitadas com o uso de vacinas que já foram desenvolvidas! Ou seja, acredite se puder, 3 milhões de crianças morrem anualmente no mundo por conta da falta de acesso às vacinas que temos – a situação das crianças africanas é especialmente preocupante. Para evitar os outros 6 milhões de mortes, seriam necessárias novas vacinas.
As novas vacinas podem, assim, escrever um futuro, no qual as doenças infecciosas serão uma raridade. Se daqui a algumas décadas a AIDS for uma doença do passado, como a varíola é e como será em breve o sarampo, mais uma vez uma vacina será citada como o mensageiro que nos ajudou a vencer um grande inimigo. Mas o que nos falta para que as novas vacinas que precisamos tanto sejam desenvolvidas? Para responder isto, temos que nos ater à mensagem que deve ser passada ao sistema imunitário. A mensagem deve conter duas informações essenciais: a impressão digital do patógeno (patógeno = agente causador da doença) e, sobre esta, o carimbado dizendo “Inimigo! Combata assim...”. Esta mensagem é reconhecida pelo nosso sistema imunitário, o qual se torna então apto a derrotar o patógeno e evitar que este desenvolva a doença.
A impressão digital do patógeno, à qual se dá o nome de antígeno, é o ponto fraco deste e é onde o nosso sistema imunitário exercerá boa parte de seu ataque. O carimbo de “inimigo”, chamado adjuvante da vacina, funciona como o aval para que o ataque seja exercido e também diz como este ataque deve ser realizado (cada patógeno deve ser atacado de uma maneira específica). Dispomos hoje de um vasto banco de impressões digitais de patógenos. Ainda que este banco seja insuficiente para desenvolver vacinas eficazes contra alguns patógenos, o que mais nos falta hoje, de longe, é a capacidade de carimbar estas impressões digitais adequadamente com a mensagem de “inimigo”.
É neste ponto que a nanotecnologia está prometendo ajudar, e muito. Para as vacinas que não usam o próprio patógeno modificado como carimbo (o que traz vários inconvenientes), hoje em dia dispomos de apenas um carimbo artificial: os sais de alumínio. O problema é que este adjuvante não é apto a carimbar a mensagem de “inimigo” em todos os casos e, mesmo quando consegue, pode induzir o nosso sistema imunitário a combater o patógeno com ferramentas inadequadas. Precisamos de novos adjuvantes, carimbos mais versáteis e eficazes, que passem a mensagem correta ao sistema imunitário.

Lipossomo. Um dos nanoadjuvantes mais estudados.



Foi pensando na escala nano que cientistas desenvolveram diversos novos carimbos. Lipossomos, complexos imunoestimulantes (sigla inglesa ISCOMs), MF59, nanopartículas poliméricas, nanopartículas de fosfato de cálcio e proteossomos são os principais deles. Com o uso destes já foi possível desenvolver protótipos, em nível de pesquisa acadêmica, para vacinas contra diversos vírus, entre eles os da gripe, do herpes (HSV), HIV, etc. Muitos destes novos carimbos chegam a ser dezenas de vezes mais potentes que os sais de alumínio e, mais importante que isso, conseguem transmitir a mensagem correta ao sistema imunitário. As vantagens destes adjuvantes nanoestruturados incluem a apresentação do antígeno (a impressão digital) especificamente às células apresentadoras de antígeno (os destinatários profissionais das mensagens que as vacinas enviam ao sistema imunitário), o reforço controlado da mensagem (quem sabe no futuro essa característica elimine a necessidade do reforço da vacinação que hoje ocorre, por exemplo, com a vacinação contra o HBV – vírus da hepatite B) e a proteção da mensagem contra a sua perda antes da entrega ao destinatário. Além disso, esses adjuvantes nanoestruturados são plataformas versáteis que podem ser moldadas de diversas maneiras para “escrever” a mensagem que precisamos passar ao sistema imunitário com uma riqueza de detalhes muito maior do que hoje é possível com as ferramentas convencionais. Por exemplo, podemos com esses adjuvantes nanoestruturados induzir o sistema imunitário a combater o patógeno em sua porta de entrada (como as mucosas e a pele, por exemplo). Isso é possível porque a superfície destas nanoestruturas pode ser projetada para que estas penetrem no organismo de maneira semelhante ao patógeno, o que na maioria das vezes é essencial para desenvolver imunidade no local de entrada do patógeno. As nanoestruturas também podem acomodar moléculas que deixam a mensagem, digamos, mais clara às células do sistema imunitário. Enfim, o tamanho e a estrutura particulada dos nanoadjuvantes para vacinas estão propiciando falar mais claramente ao sistema imunitário e talvez sejam a solução que precisamos para o desenvolvimento de novas vacinas das quais carecemos hoje.

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